O PODER E A FAIXA DE VINIL
Transcrever
uma passagem reservada em minha memória, trazendo o que é individual para o
coletivo, não é tarefa fácil, pois preciso manter a serenidade para não
transformar a história de um fato em mero desabafo. Mas essa é uma das minhas
possibilidades de revelar a íntima relação entre o Poder e o sonho quase
interrompido de transformar a realidade de muitas crianças em situação de
vulnerabilidade. Minhas recordações de vivência na Caserna sempre retomam o
quanto uma simples faixa de boas-vindas, confeccionada em lona de vinil, pode
mexer com diferentes comportamentos e atitudes. Da alegria de um grupo por ter
conseguido confeccionar um símbolo de acolhimento; da vaidade e arrogância de
um homem que deveria ser um líder, mas que demonstrou ser o detentor de
“autoridade”; e, a força e honra de um outro homem, líder nato, que ao assumir
responsabilidade com dignidade salvou os “oprimidos” das garras de um
Comandante sem o menor senso de alteridade e empatia. Um Comandante recluso na
mística de formação de Guerra, jamais aceitaria a proposta de uma capacitação
para atuação preventiva, pedagogicamente o marco diferencial do modelo de
polícia vigente.
Creio
que era o I Curso de Formação de Instrutores do Programa Educacional de
Resistência às Drogas e Violência (PROERD) após sua reedição. O ano 2000 e o
CFAP – 1ª CIA o cenário.
O
Curso acontecia para atender demanda de reestruturação do PROERD, após sua
interrupção por cinco anos. Tudo era difícil, o filho ainda era feio e quase nenhum
apoio recebia. A faixa de vinil com a marca do PROERD e o símbolo da GRP expressavam
as boas vindas aos novos Instrutores. A faixa foi doada pelo CEL REF Almeida,
homem de fibra, que vislumbrava que nossos ideais superavam todos os óbices.
Hoje posso agradecê-lo in memoriam!
As
instalações do CFAP não eram adequadas ao processo de formação do Programa, mas
era o que se tinha. Não que nosso modelo pedagógico fosse melhor, mas o
acolhimento dos futuros Instrutores requeria nossa especial atenção, pois
durante o período de curso trabalharíamos com a afetividade, aquela afetividade
proposta por Wallon. O aprendizado significativo somado à acolhida estruturada
ditaria o tom daquela capacitação. Era lapidar o bruto para se obter a beleza
da joia rara.
E
mãos à obra! Arranjamos uma escada e começamos a esticar a faixa, que seria
amarrada com barbante ao madeiramento do teto da sala de aula (nenhum dano
seria causado), a faixa ficaria fixada na lateral da sala de aula que serviria
de sala principal (a que reúne o grande grupo em uma formação no modelo PROERD
de mentoria), quatro outras salas deveriam ser usadas para a composição das
cinco equipes de trabalho.
A
faixa, antes mesmo de fixada temporariamente, já nos passava a sensação de
alegria e aquele recomeço faria justiça aos desdobramentos de uma Resolução
impensada de 1995, que extinguira o PROERD, na PMERJ.
Feita
a primeira amarração, movia a escada para o lado oposto quando um grito
assustador paralisou a mim e toda minha equipe: “com ordem de quem vocês estão
colocando isso aí? E, continuou gritando: “eu não autorizei nada, tirem isso
agora!... sou o comandante e não estou sabendo desse negócio aí!...”
Fiquei
estática, a voz sufocada, meu olhar vago só conseguia perceber o Oficial CMT
batendo freneticamente com uma varinha na mão (não posso afirmar que seria um
Bastão de Comando, pois o mesmo é prerrogativa de Oficial General), mas era
algo parecido carregado da simbologia de Poder, de Autoridade. Enquanto gritava
e batia na mão sua sede de Poder era patética, minha sensação de impotência
também patética. Questionava em minha mente o que estariam sentindo os
Mentores, como um Comandante pode demonstrar “força” contra quem só queria um
espaço para cumprir ordens de alguém superior ao mesmo?
A
equipe cabisbaixa, eu estagnada, entrando quase que num estado de catatonia
ante tamanha agressão. A medição do Poder e da Autoridade contra a fragilidade
daqueles que lutavam aguerridamente por um ideal me parecia contraditório.
Ainda
presa ao conflito instado, ouvi quando o nosso “Salvador” fez a intervenção: “EU autorizei Comandante!”, era a voz
assertiva daquele que se revelou digno de toda nossa reverência, respeito e
admiração. Matou no peito, nos devolveu a vontade de continuar a missão! O
então CAP Luciano Souza honrou a farda, honrou seu compromisso de CMT
daquela 1ª CIA e assumiu toda responsabilidade pela colocação temporária de uma
faixa de vinil que carreava a significação de uma acolhida motivadora para
tantos outros policiais que ali chegariam para aprender e apreender novos
saberes direcionados ao trato com crianças. Não lhes caberia mais uma prática
permeada pela mística truculenta que ainda vigorava apesar de estarmos
experenciando uma nova Era ditada na PMERJ, alinhada com modernas estratégias
de policiamento preventivo.
Nossa!
Quanta diferença, quanta honra, dignidade, solidariedade, visão de futuro cabia
no coração de Luciano Souza, Oficial que até hoje chamo de “O Nosso Salvador”!
Nossa
faixa, tão simples, foi finalmente esticada, os alunos chegados sentiram-se
acolhidos e o Curso foi concluído com êxito, apesar de tantos pontos de
desequilíbrio, decorrentes de intervenções maldosas. Talvez aí esteja a
diferença entre formações do tempo do “vamos fazer acontecer” (mesmo sem
recursos financeiros e enfrentando as resistências) para as que são realizadas
com aportes oriundos de certas “parcerias”.
Acredito
que foi esse dia e a atitude do então CAP Luciano Souza que me impulsionaram ao
primeiro passo em direção a conquista de um espaço para o PROERD, onde na Ordem
do Dia seria sempre valorizado o compromisso com a Ética, a Educação, a
Autoridade com Afetividade e Assertividade.
Aprendi
com o Oficial Comandante que não somos, apenas estamos no exercício de uma
função de Comando e que o Poder não pode ser travestido de vaidade,
agressividade e estupidez!
E
as coisas que circulam minha mente dão uma paradinha trazendo à baila a célebre
frase: “Profissionais não se improvisam e o mando deve caber ao mais digno”.
LOOS,
T.
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